terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Janio de Freitas

"O golpe inequívoco via telex", copyright Folha de S. Paulo, 31/03/04

"Em torno do meio-dia, era cedo ainda para o encontro marcado com o economista Gilberto Paim, um dos tantos egressos do Partido Comunista que, à época, ainda se identificavam com várias das posições nacionalistas e, digamos, progressistas. Nem havia muito o que escolher, era um lado ou outro, por maiores que fossem as ressalvas. Resolvi fazer hora conversando com Raimundo Wanderley Reis, era só entrar no Banco Nacional, ali mesmo na esquina de Ouvidor com Rio Branco, e subir ao quarto andar. Os amigos gostavam de saber as novidades de minha ocupação naqueles meses -estava montando um novo jornal. Encontrei Raimundo com ares mais confidentes do que nunca: me mostrou a cópia de uma mensagem que o encarregado do telex lhe contrabandeara, antes de mandá-la ao destinatário na direção do banco.

À 1h, Paim e eu entrávamos no Conselho de Segurança Nacional, que era a instância central no sentido então muito amplo de segurança e de nacional. Desde algum tempo, me interessara por estudar os processos de comunicação subliminar, ou seja, de apreensão sem plena consciência da própria apreensão, e, bem a propósito, a meio daqueles dias tumultuosos me soara um alarme. Espanhol que por anos viveu no Brasil e fizera algumas experiências de subliminar nos estúdios da (extinta) TV Rio, meu amigo Carlos Pedregal me procurara excitado por um fato estranho: fora contatado por um certo Enaldo Cravo Peixoto, que se mostrava interessado no assunto da subliminar. Mais do que integrante do governo lacerdista da Guanabara, Enaldo era participante do círculo extremado de Carlos Lacerda. Falei a algumas pessoas de quanto isso me deixou preocupado, e Gilberto Paim contatou um amigo do Conselho ao qual sugeria que eu alertasse. Era o caso, sem dúvida.

Fui sucinto e cauteloso. E não precisava ser mais do que isso: o coronel me ouvia com o misto de suficiência e indiferença de quem, autoridade, não tem a menor idéia do que está ouvindo, sequer parecia conhecer a palavra subliminar. Melhor assim, porque minha preocupação já era outra.

- E a rebelião em Minas, em que pé está, coronel?

- Rebelião?

- É. Rebelião militar.

Tinha certeza de estar tudo calmo, mas fez um telefonema.

- Falei com a Segunda Seção do Primeiro Exército [A Segunda Seção é a de informações]. Não há nada. Está tudo calmo.

- É melhor falar com outros também, coronel, porque há, sim. As tropas do Exército rebelaram-se em Belo Horizonte hoje de manhã e saíram dos quartéis.

Não imaginaria, jamais, ser necessário informar a principal instância da segurança nacional, o cerne do tão falado ‘dispositivo militar’ do Jango, de que o país estava sendo sublevado. Mas a caminho do elevador já levava todo o dramático sentido do que me dissera dias antes, melancólico e tenso, o coronel Donato Machado, talvez o mais lúcido militar dos que me tornei amigo: ‘Não há dispositivo militar nenhum, o Assis Brasil não montou dispositivo coisa nenhuma. A direita vai dar o golpe. E ganha’ [Assis Brasil, general chefe do gabinete militar da Presidência, era dado como articulador de um dispositivo imbatível, que levava o seu nome e só esperava ‘a direita pôr a cabeça de fora’, como ele dizia].

O golpe estava lá, claro, determinado, inequívoco, no telex em que Magalhães Pinto, governador de Minas, comunicava ao sobrinho e diretor-regional do seu banco, José Luiz Magalhães Lins, que a rebelião começara e deviam ser tomadas as providências convenientes. Semanas mais tarde, quando os militares contrários ao golpe começaram a sair da prisão, tive dos coronéis Donato, Joaquim Ignácio Cardoso, Kardec Leme e outros, a explicação para o alheamento do Conselho no dia 31: os oficiais do golpe usaram de diferentes artifícios para manter os oficiais pró-governo ocupados à distância de telefones, rádios e de outros colegas, enquanto fosse possível. Foi possível pela maior parte do dia. Mas de nada adiantaria estarem informados, porque o ‘dispositivo militar’ de Jango era só uma fantasia do general Assis Brasil, um militar de vida pacata que se deixara fascinar pelas tentações fáceis de Brasília.

A falta do ‘dispositivo’ não quer dizer que o golpe fosse incontível. O coronel Heitor Linhares, que descera com as tropas de Minas para o Rio, em narrativas a José e Maria Yedda Linhares e a mim, contava que os soldados debandaram, em pânico, pelas terras à margem da estrada, e foi difícil recompor a ordem. Tinham se apavorado com o aparecimento de nada mais do que um teco-teco da Líder Taxi-Aéreo, emissário de Magalhães Pinto para informá-lo da altura em que estavam os rebelados a caminho do Rio.

Foi a constatação desse estado da tropa, feita depois em um vôo a jato, que levou o coronel Ruy Moreira Lima, comandante do 1º Grupo de Caça, a uma proposta a Jango, quando lhe levou no Palácio das Laranjeiras o relato de seu vôo de observação: bastaria uma bomba lançada na estrada, à frente da tropa, para acabar com a rebelião sem ferir ninguém. Comandante da 3ª. Zona Aérea no Rio, o brigadeiro Francisco Teixeira, identificado como um dos militares ligados ao Partido Comunista, convenceu Jango a recusar a sugestão. Segundo o coronel Heitor Linhares, a soldadesca, quase toda já à espera de dar baixa do serviço militar, teria reagido como Moreira Lima previra.

Depressa me convenci de que a tese generalizada de mais uma intervenção rápida dos militares, como as tantas anteriores, daquela vez estava errada. Eles queriam ficar, portadores de uma carga de ódio sem precedente. Senti o dever sufocante de convencer Mário Wallace Simonsen (dono da TV Excelsior, da Panair e de um jornal em São Paulo, ‘A Nação’, que Cláudio Abramo e Roberto Gusmão tentavam recompor) de que não devíamos continuar com a montagem do novo jornal. O prédio esplêndido foi vendido, máquinas foram vendidas ou tiveram interrompida sua aquisição. Íamos associar a empresa de um empreendedor avançado e uma cooperativa de jornalistas, em torno de um jornal cujo modelo mesmo hoje seria inovador. Essa, porém, foi uma frustração insignificante, entre as tantas outras, inclusive de vidas, que militares facinorosos levariam sua ditadura a causar."

Um comentário:

Anônimo disse...

Vc foi mesmo amigo do Coronel Donato Machado?

Evoé!

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Ricardo Sant'Anna Reis 21.9170-9004

Ricardo Sant'Anna Reis  21.9170-9004
"rondava a rosa à poesia pelos jardins das flores tanto mais diversa a rosa quanto mais forem os amores". Sociólogo, poeta e editor, publiquei em antologias e recebi alguns premios literários. Tenho dois livros: "Diario da Imperfeita Natureza" e "Derradeiro Prelúdio" (no prelo). Pretendo aqui interagir com voce sobre poesia ou qualquer outro assunto relevante.

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