domingo, 1 de junho de 2008

La Gaviota


Vens de longe do infinito
e mergulhas
como em teu último ato.

Morres então com teu passado irrelatado
e num déjàvu recorrente,
renasces
para novo mergulho


celebrando a vida
sem que o saibas ou intuas.

De repente, com teu bando, - Burundangas!


Cruzas plena alvinegra o celeste azul
contra o azul plúmbeo do intenso mar

e te misturas, também a grei de pedras.


Fugacidade. Cortas o céu

com teu sentido de urgência.


Uns te chamarão: “Passarinho”

em sabida ignorância!

Tamanho “Passarão”! Competente pescador
que te invejam os pobres homens
distantes na areia.


Em geral

os teus vôos falam

do teu prazer
e de tua precisão

concisa.

O teu sobrevôo

releva a sedosidade do mar
que, inda que bravio

é simples cenário para tua beleza.

O peixe – Apenas

frugal recompensa.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Lusco-fusco




Alguns signos se erguem como emblemas de anunciação
Aos elementos me levam, gotas de chuva, torrentes
Sementes, ventos furtivos, segredos de aluvião.

Quando o sol se faz presente, no estio carrega o vento
E ofusca o fugaz momento.

À tona o lusco das pedras raras
Mistura-se ao brilho da paixão.

Se radicam os sentimentos

Outrora tão compassivos.
O corpo toma-se de cobiças dormentes.
A volição de um mormaço

Que é prana, vital energia.

Basta o aroma ávido da terra

E um beijo roubado a ninfa
Que a esta lírica elegia

Tão doce vem alumbrar.

Oh, tais tontearias que me fazem
Em êxtase caminhar sobre águas.
Pelo o rastro da maresia, ir-me
Seguindo e no intimo repetindo
O heróico ânimo de uma grácil bateira
Rompendo tormentas no mar.

A andorinha


Ah, surpresa constante
faz o livre vôo da andorinha
sobre a campina em flor;
vôo rasante, irregular
regido pelo rumorejar
de ares frios no dia nascente.

Vai ao sul; não mais.
Vai ao leste; ou então
volta atrás, parecendo
renascer como Alceste.

Ah, como é franco este voar
que imprime contra o azul
um tão pequenino porte.

Como as assertivas
em meus versos
a andorinha, vareja
sempre sem norte.

A Minha Canção do Exílio



Ah, a minha pátria sem palmeiras
onde eu pudesse sonhar
esta pátria, como um rio

Como um monte verde, um cio
chuva intensa a estiar
Ah, pátria minha que me agride

Mas ensina-me a evitar a morte
na permanência e na poeira
a minha pátria é rasteira

E eu? sou mais um cristão sem sorte
no corpo da minha pátria
carpindo, carpindo,
eu faço brotar o grão

A minha pátria é o beijo da mulher
que me ativa e alimenta, saliva feita de vinho

boca com gosto de pão
corpo, mente, peito forte
meus pés cravados no chão.

Sanhaço

A alteridade em vão nos pugna
faz ao espelho buscar a tua imagem
para irmos juntos
co´as as almas flamas
refletidas sempre desde aparte.

Se a prosódia é por estilo
transitivo o verbo Ser há de tornar-se
posto que para amar-te
mais do que querer, é preciso Ser-te!

Se pouso em teus olhos tristes, e umedeço
e se ao grito surdo do mundo eu silencio
se em teu verso solto me reconheço
arauto de um viver confuso que anuncio

este amor que tive e que me esqueço
é um ardor mais profundo que fastio.

Ferve em ti a epiderme, no equinócio ou veranico
como um sanhaço tece a enlaçada trama, fio a fio.

Quisera a alumbrada seiva dos desejos;
a claridade do sorriso na fronte bela.
Quisera os sons perdidos no solfejo
e de manhã no céu bruxuleante
o derradeiro sortilégio de uma estrela.

No claro/escuro, ao fulgor da vela acesa
velar-te em longo beijo de cinema
num filme amante em que por fraco
eu anoiteço.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

O grande mestre e poeta maior do Brasil...



A MÁQUINA DO MUNDO

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.


Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Evoé, mestre da poesia....



O Albatroz

Às vezes, por prazer, os homens de equipagem
Pegam um albatoz, enorme ave marinha,
Que segue, companheiro indolente de viagem,
O navio que sobre os abismos caminha.

Mal o põem no convés por sobre as pranchas rasas,
Esse senhor do azul, sem jeito e envergonhado,
Deixa doridamente as grandes e alvas asas
Como remos cair e arrastar-se a seu lado.

Que sem graça é o viajor alado sem seu nimbo!
Ave tão bela, como está cômica e feia!
Um o irrita chegando ao seu bico em cachimbo,
Outro põe-se a imitar o enfermo que coxeia!

O poeta é semelhante ao príncipe da altura
Que busca a tempestade e ri da flecha no ar;
Exilado no chão, em meio à corja impura,
A asa de gigante impedem-no de andar.

Charles Baudelaire

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Lua no breu


a lua quando nasce
é um cisco
semente
serenata
flutuando ao léu

de corpo crescente
ou minguante
uma nau
brincante no céu

que navega e reluz
entre as estrelas
entalhes de prata

luz que silencia
no alto
um enigma
que a todos conduz

caminhemos
tu e eu
em alento júbilo
de peregrino
pela clara beleza da noite

enquanto a lua
agora plena
vai desafiando o breu

Cláudia Gonçalves & Ricardo Reis

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Poema meu premiado com o primeiro lugar no Concurso Literário dos Servidores do Estado do RJ, 2007.


Ode ao Contínuo Sertão



De fato era um homem montado
de carnes e de musculos
adejantes canais na epiderme
couro e mais pelos
compondo-se em fluxos.

De fato era um homem envolto
em distância e pó
na sujeira encardida da cidade
mistura das discrepancias
ressonantes do tempo.
O sertão recuperado no íntimo
sendo aqui na plena urbes
ou nas profundas do Seridó.

De fato era um homem e só.
Que bicho não era, se via.
E embora a idade elidisse
a memória
teve uma mãe, um começo
teve, se lembra, um berço
e a sensação de regalo
na noite pia.

Ali, velho e estranho, parece
ter alcançado
o impossivel do viver
sequer sem ser visto.

De fato era um homem.
Mas que bicho parecia...
Ah, isto lá parecia!
Tão entretido nas sobras
que a caridade servia.

Por onde passava
lhe davam os frutos do chão
que se come.
De fato era um homem e comia.
Não sem sentir o alimento
adivinhar-lhe a acidez no cheiro
como um babuino o faria.

Cheirava e comia o tomate.
A vagem cheirava e mascava
macerando as fibras e o sumo.
A cenoura, que é doce, roia.
Sorvia entre os dentes
insuspeitos nutrientes
o açucar-azedo do maracujá
a seiva de raizes cruas
com a mesma devoção ritual
como que nos primórdios
uma mangangá libaria
ou como alguem que diante
estivesse da alta cozinha
de Flandres.

No alto do céu luzia, anunciando
a noite vinda, uma estrela
muito fria.

Às vezes animal
o homem pressentia quando olhava torto
de esguelha
a quem lhe notava no canto escuro da esquina.
Adultos quase nunca o reparavam, mas as crianças
e em especial, as meninas
pareciam reconhece-lo
num personagem de Grimm
um espirito da floresta.

De fato era um homem e inteiro.
Mas bem que podia ser espírito
este hominídio megalítico
que aspirava no ar os odores
da Canudos perdida, perdido conselheiro.
E mais alem
tambem o aroma dos carvalhos
da Galiza, na Península Ibérica.

Era um homem sem ter pressa
tocando a comida com a mão
em meio a avidez feérica da rua.

E sua barba longa sugere, o que
seu viver atesta:
A pureza feita de pedra
hábil Manuelzão.
De fato era um homem, já creio.
Pois que da fome enfastiada cofiando a barba
e prenhe de humanidade
num corisco empertigou
e deixando-se de estar de cócoras
rumou-se, então, para o nada.

sábado, 10 de maio de 2008

poemeto sobre o amar



O amor quando acontece
pode ter a genética
de um tornado
arrasador e insólito.

Mas o há aquele que amarelece
no sorriso tímido do rapaz
e o que no esperar da moça
empoeira-se.

O que poderá de ser
de um acontecimento
mesmo acentuado e forte
com um tal sentir de gosto...
e que inda por ser assim
é de tal fragilidade
que nasce musgueando
pelos cantos nas ruas
nos becos da cidade
na relva triste das tundras
no charco raso das várzeas
e que toma de tudo conta
como hera de parede?

É preciso proteger
um tal sentimento
do impiedoso jardineiro
senhor da razão do condado
que mora num estóico rancho
no fundo do bosque sombrio
e quando vem a lume
vem aparar as ramagens novas
de um coração descuidado.

Floreios a Baudelaire


As flores nos desvãos
são desvios
desnovelos, desvelos
desvarios
as flores rés do chão.

São floreios
ao céu, ao espírito
flores de libertação.

Cativas belezas
eternas e mudas
as flores de pedra
são flores ao léu.

As flores são cores sobrepostas.
As flores, rotas ou vivazes
enfileiradas e mortas.

As flores retas
são as flores
ainda mais tortas.

Flores da diva, flores da vida
flores dádivas, flores cápsulas
flores do embuçado, do enforcado
são as Fleurs du Mal.

BLOW BY BLOW


Sou como um
penacho na aura
da tarde.

Não sou livre
se não sei
para onde ir.

Sou prisioneiro
do desvairo
dos ventos frios
da tarde.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Serelepe a Mario Quintana


Os deuses que me redimam.

Nunca me ocuparam a mente

como o fizeram as mulheres.


Todavia, vem chegando a idade

em que a tesão parece serenada

e a vontade que dá, é a de partir

para a Pasargada do Bandeira

abraçado a mulher amada.


Mas o diabo é que vem de lá

uma moça qualquer, bem faceira

requebrando serelepe

e eu já não sei se parto ou se fico

reparando-lhe a saia rodada.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Un Coup De Dés (Um Lance de Dados)


O poema visionário, antecipador da poesia moderna....



FOSSE


origem estelar


SERIA


pior


não


mais nem menos


indiferente mas outro tanto


O NÚMERO


EXISTIRIA


senão como a alucinação dispersa da agonia


COMEÇARIA E CESSARIA


brotando qual negado e fechado quando surgido


enfim


por alguma profusão espargida em raridade



CIFRAR-SE-IA


evidencia da soma por pouco fosse uma


ILUMINARIA


O ACASO


Cai


a pluma


rítmica pausa do sinistro


sepultar-se


nas escunas originais donde


há pouco sobressaltara seu delírio até um cimo


esmaecido


pela neutralidade idêntica do abismo



Stéphane Mallarmé, maio de 1897

PATRYAMADA




Libertas


quae sera dia
O teu desejo
inda que obscuro

As quimeras
de teu quarto escuro
vão Devorar-te

na Nova Acrópole lusa
da devassidão


Nas tórridas Terra Brasilis
do caju e da floresta sem fim
imersas na bruma malsã
Iara e Janaína te convidam
para um menagé a trotoir



Vai junto o Caipora


tocando a flautinha de Pã

O lobo Guará e o tamanduá
de desfraldadas bandeiras

O jacarandá e o pé de feijão

Mitos, tesão e letargia
os bens do Brasil são

POEMA PROSA DA FLOR FORMOSA







quando a rosa amena se encontra com a azálea
chora em seu ombro à soluçar a flor poema.
Com intensidade, chora sentida e desencantada.
Inveja a vida que se espraia livre, da margarida
à margens de estradas infindas.

Inveja todas as flores, as mirradas e as feias
as pluriformes, as inominadas, as marias sem-vergonha
ou mesmo as francas orquídeas, tão lindas.

Que benção então não seria
(pensa rosa) não ter mais o peso de tal beleza
ou que não existissem amantes ou poetas que lhe quisessem atribuir alguma precisa serventia
para as inefáveis artes da humana sedução:

"De que me vale ser así tan bella como eu son
se permaneza escrava desta inata condición?".




domingo, 13 de abril de 2008

um pouco do grande e injustamente esquecido mestre Souzândrade...


O Guesa Errante

Canto Primeiro

Eia, imaginação divina!
Os Andes
Vulcânicos elevam cumes calvos,
Circundados de gelos, mudos, alvos,
Nuvens flutuando — que espetac'los grandes!

Lá, onde o ponto do condor negreja,
Cintilando no espaço como brilhos
D'olhos, e cai a prumo sobre os filhos
Do lhama descuidado; onde lampeja

Da tempestade o raio; onde deserto,
O azul sertão, formoso e deslumbrante,
Arde do sol o incêndio, delirante
Coração vivo em céu profundo aberto!

.............................................

"Nos áureos tempos, nos jardins da América
Infante adoração dobrando a crença
Ante o belo sinal, nuvem ibérica
Em sua noite a envolveu ruidosa e densa.

"Cândidos Incas! Quando já campeiam
Os heróis vencedores do inocente
Índio nu; quando os templos s'incendeiam,
Já sem virgens, sem ouro reluzente,
"Sem as sombras dos reis filhos de Manco,
Viu-se... (que tinham feito? e pouco havia
A fazer-se...) num leito puro e branco
A corrupção, que os braços estendia!

"E da existência meiga, afortunada,
O róseo fio nesse albor ameno
Foi destruído. Como ensanguentada
A terra fez sorrir ao céu sereno!

"Foi tal a maldição dos que caídos
Morderam dessa mãe querida o seio,
A contrair-se aos beijos, denegridos,
O desespero se imprimi-los veio, —

"Que ressentiu-se, verdejante e válido,
O floripôndio em flor; e quando o vento
Mugindo estorce-o doloroso, pálido,
Gemidos se ouvem no amplo firmamento!

"E o Sol, que resplandece na montanha
As noivas não encontra, não se abraçam
No puro amor; e os fanfarrões d'Espanha,
Em sangue edêneo os pés lavando, passam.

"Caiu a noite da nação formosa;
Cervais romperam por nevado armento,
Quando com a ave a corte deliciosa
Festejava o purpúreo nascimento."

Assim volvia o olhar o Guesa Errante
Às meneadas cimas qual altares
Do gênio pátrio, que a ficar distante
S`eleva a alma beijando

Qual um vaso de fina porcelana
Que de através o sol alumiasse,
Qual os relevos da pintura indiana
É o oriente do dia quando nasce.

Uma por uma todas se apagaram
As estrelas, tamanhas e tão vivas,
Qual os olhos que lânguidas cativas,
Mal nutridas de amores, abaixaram.

Aclaram-se as encostas viridantes,
A espreguiçar-se a palma soberana;
Remonta a Deus a vida, à origem d'antes,
Amiga e matinal, donde dimana.

Acorda a terra; as flores da alegria
Abrem, fazem do leito de seus ramos
Sua glória infantil; alcion em clamos
Passa cantando sobre o cedro ao dia

Lindas loas boiantes; o selvagem
Cala-se, evoca doutro tempo um sonho,
E curva a fronte... Deus, como é tristonho
Seu vulto sem porvir em pé na margem!

Talvez a amante, a filha haja descido,
Qual esse tronco, para sempre o rio —
Ele abana a cabeça co'o sombrio
Riso do íris da noite entristecido.

O poema fundador do Simbolismo, do grande mestre Mallarmé


SALUT

Nada, esta espuma, virgem verso
Apenas denotando a taça;
Como longe afogam-se em massa
Sereias em tropa ao inverso.

Navegamos, ó meus diversos amigos,
Eu já sobre a popa,
Vós a proa que rompe em ponpa
As vagas de trovões adversos.

Empenho-me em pura voragem
Sem mesmo temer a arfagem
A, de pé, este brinde erguer:

Solitude, recife, estrela,
A não importa o que valer
O alvo desvelo em nossa vela.

Stéphane Mallarmé

Canção de volver amigo



Vem de longe, campeando plagas
Desde a portenha estância que sumia
E em bom tordilho, ei-lo que aqui se apeia



Sê bem-vindo o que se foi e agora volta
E que entre os seus é recebido em relevância
Acolhe-o num abraço, toda pompa e circunstancia



Na precisa hora em que a poesia já se entorta
Eis que chega à praça no nascer da rosa pública
E cruza aleas de flores vãs, longa avenida



Quando se vê o advento, regresso eterno, canção de amigo
Et pour cause, volta aos lirismos de toda gama
E constrói um poema que caminha sem ter termo



Ei-lo de volta, - o que se vai e o que vem vindo
É quando então num átimo, um sentimento sobe ao tino:
A alegria atroz e desvairada de menino



E a emoção desencadea a verve solta.
Que o saúdem, então, e o velem em canto antigo.
Inda o poeta bebe na fonte orgiástica e urbana
para o verter-se d’alma

Há de buscar no peito o abrigo


(em português Brasil)
Ven de lonxe, campo plagas
Desde a portenha estância que sumia
E en bo tordilho, ei-lo que aquí se apeia
Se ben a benvida o que foi e agora volta
E que entre os seus é recibido en relevancia
Acolle-o nun abraço, toda Pompeu e circunstancia
Na precisa hora na que a poesía xa se entortava
Eis que chega á praza no nacer da rosa publica
E cruz as aleas de flores vãs, longa Avenida
Cando se ve o advento, regreso Eterno
Et pour cause, volta ós lirismos de toda gama
E constrúe un poema que camiña sen ter termo
Ei-lo de volta, o que se vai e que ven benvida
É cando entón nun ai, un sentimento sobe ao tino
A alegría atroz e desvairada de neno
E a emoção desencadea a verve solta
Que a saúde, entón, e o velem en Canção de amigo,
Que inda o poeta bebé Na fonte orgiástica e urbana,
A verter-se D'alma, e buscar no peito o abrigo
(em Luso Galego)

quarta-feira, 9 de abril de 2008

CINZA INTERIOR

A Ferreira Gullar
A casa é sempre presença.
É chão com falhas que esconde o cisco de ovo não varrido.

A casa ressende a café da manhã e a outros cheiros de um dia começando misturados aos ficados da noite.
A casa é o trabalho dos anos
é a oclusão dos cantos
é a ruminação dos insetos.

A casa é o vento forte da tarde.
É a espera pela chuva para o viver do telhado.
A casa é saudade, é beiral de abrigar ninhos
algaravia das andorinhas.
É amor de pai
prontidão de filho
promessas de eternidade.

A casa é o vinho do porto
acalentando uma noite fria
noite de amor lúbrico.
A casa é o choro da criança
é lugar de morte e de vigília
a casa é a casa da fazenda
donde se avista, desde o alpendre
os pastos no vale umbrífero
lá no longe da memória.

É útero ubérrimo, a casa
a parir os aconchegos
e a preguiça doce do não-ser.

terça-feira, 8 de abril de 2008

Carta a um jovem poeta


Paris, 17 de fevereiro de 1903
Prezadíssimo Senhor,

Sua carta alcançou-me apenas há poucos dias. Quero agradecer-lhe a grande e amável confiança. Pouco mais posso fazer. Não posso entrar em considerações acerca da feição de seus versos, pois sou alheio a toda e qualquer intenção crítica. Não há nada menos apropriado para tocar numa obra de arte do que palavras de crítica, que sempre resultam em mal-entendidos mais ou menos felizes. As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizívies quanto se nos pretenderia fazer crer;
a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. Menos suscetíveis de expressão do que qualquer outra coisa são as obras de arte, — seres misteriosos cuja vida perdura, ao lado da nossa, efêmera.

Depois de feito este reparo, dir-lhe-ei ainda que seus versos não possuem feição própria, somente acenos discretos e velados de personalidade. É o que sinto com a maior clareza no último poema Minha alma. Aí, algo de peculiar procura expressão e forma. No belo poema A Leopardi talvez uma espécie de parentesco com esse grande solitário esteja apontando. No entanto, as poesias nada têm ainda de próprio e de independente, nem mesmo a última, nem mesmo a dirigida a Leopardi. Sua amável carta que as acompanha não deixou de me explicar certa insuficiência que senti ao ler seus versos sem que a pudesse definir explicitamente. Pergunta se os seus versos são bons.Pergunta-o a mim, depois de o ter perguntado a outras pessoas. Manda-os a periódicos, compara-os com outras poesias e inquieta-se quando suas tentativas são recusadas por um ou outro redator. Pois bem — usando da licença que me deu de aconselhá-lo — peço-lhe que deixe tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, — ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranqüila de sua noite: "Sou mesmo forçado a escrever?” Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples "sou", então construa a sua vida de acordo com esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverátornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão. Aproxime-se então da natureza. Depois procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde. Não escreva poesias de amor. Evite de início as formas usais e demasiado comuns: são essas as mais difíceis, pois precisa-se de uma força grande e amadurecida para se produzir algo de pessoal num domínio em que sobram tradições boas, algumas brilhantes. Eis por que deve fugir dos motivos gerais para aqueles que a sua própria existência cotidiana lhe oferece; relate suas mágoas e seus desejos, seus pensamentos passageiros, sua fé em qualquer beleza — relate tudo isto com íntima e humilde sinceridade. Utilize, para se exprimir, as coisas do seu ambiente, as imagens dos seus sonhos e os objetos de sua lembrança. Se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair as suas riquezas. Para o criador, com efeito, não há pobreza nem lugar mesquinho e indiferente. Mesmo que se encontrassenuma prisão, cujas paredes impedissem todos os ruídos do mundo de chegar aos seus ouvidos, não lhe ficaria sempre sua infância, esta esplêndida e régia riqueza, esse tesouro de recordações? Volte a atenção para ela. Procure soerguer as sensações submersas deste longínquo passado: sua personalidade há de reforçar-se, sua solidão há de alargar-se e transformar-se numa habitação entre o lusco e fusco diante do qual o ruído dos outros passa longe, sem nela penetrar. Se depois desta volta para dentro, deste ensimesmar-se, brotarem versos, não mais pensará em perguntar seja a quem for se são bons. Nem tão pouco tentará interessar as revistas por esses seus trabalhos, pois há de ver neles sua querida propriedade natural, um pedaço e uma voz de sua vida. Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade. Neste caráter de origem está o seu critério, — o único existente. Também, meu prezado Senhor, não lhe posso dar outro conselho fora deste: entrar em si e examinar as profundidades de onde jorra sua vida; na fonte desta éque encontrará resposta à questão de saber se deve criar. Aceite-a tal como se lhe apresentar à primeira vista sem procurar interpretá-la. Talvez venha significar que o Senhor é chamado a ser um artista. Nesse caso aceite o destino e carregue-o com seu peso e a sua grandeza, sem nunca se preocupar com recompensa que possa vir de fora. O criador, com efeito, deve ser um mundo para si mesmo e encontrar tudo em si e nessa natureza a que se aliou.
Mas talvez se dê o caso de, após essa decida em si mesmo e em seu âmago solitário, ter o Senhor de renunciar a se tornar poeta. (Basta como já disse, sentir que se poderia viver sem escrever para não mais se ter o direito de fazê-lo). Mesmo assim, o exame de sua consciência que lhe peço não terá sido inútil. Sua vida, a partir desse momento, há de encontrar caminhos próprios. Que sejam bons, ricos e largos é o que lhe desejo, muito mais do que lhe posso exprimir.
Que mais lhe devo dizer? Parece-me que tudo foi acentuado segundo convinha. Afinal de contas, queria apenas sugerir-lhe que se deixasse chegar com discrição e gravidade ao termo de sua evolução. Nada a poderia perturbar mais do que olhar para fora e aguardar de fora respostas a perguntas a que talvez somente seu sentimento mais íntimo possa responder na hora mais silenciosa. Foi com alegria que encontrei em sua carta o nome do professor Horacek; guardo por este amável sábio uma grande estima e uma gratidão que desafia os anos. Fale-lhe, por favor, neste meu sentimento. É bondade dele lembrar-se ainda de mim; e eu sei apreciá-la.
Restituo-lhe ao mesmo tempo os versos que me veio confiar amigavelmente. Agradeço-lhe mais uma vez a grandeza e a cordialidade de sua confiança. Procurei por meio desta resposta sincera, feita o melhor que pude, tornar-me um pouco mais digno dela do que realmente sou, em minha qualidade de estranho.

Com todo o devotamento e toda a simpatia,

Rainer Maria Rilke

A Mulher em Flor


A flor do amor deriva

O seu perfume

De sua intensa luz

Ou da dor do ciúme?

Ah, este tom encarnado, esta cor

Esta ilusão mais forte que a verdade

Ah, esta úmida e recôndita flor

em cártula preciosa de feminina beldade

Ah, este radioso e rubro lume

Este hálito que incendeia

Aos instintos

Pétalas viçosas, acesas

Ou pequenas e confrangidas

Quando em atilado frio

Nós, os homens, como iremos sobreviver

Tão frágeis que somos

Ao amor, quase veneno

destilado pela inaudita

flor do cio?

segunda-feira, 7 de abril de 2008

DE TANTO AMAR

QUANDO TE VI, súbito
ornou-me o espírito
a esperança
de que me pudesses amar

Não há promessa mais vã
nem uma que mais engane
que mais se negue à virtude
do que a promessa
de um amor puro

E este, o amor, com certeza
expressa em toda a excelência
o pendor comunicativo
dos homens

Ao amar-te assim, profundo
eu, egoísta que sou
intimamente me ligo ao mundo

Amo-te, pois, para ser tu
compassivo como o amor prana
a imatéria amante que se espraia
e que transpõe o alto muro
a carne do Deus dos ateus
em sua face mais humana

Amo-te, pois, para ser tu em sendo eu
Para querer os teus próprios quereres
privar de teus nédios momentos

Amo-te para te-la em meus braços
ou para rete-la em pensamentos

Amo-te, mesmo que me reste perde-la
por inúteis os meus pífios poderes
por tão frágeis os meus poucos talentos

Evoé!

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Ricardo Sant'Anna Reis 21.9170-9004

Ricardo Sant'Anna Reis  21.9170-9004
"rondava a rosa à poesia pelos jardins das flores tanto mais diversa a rosa quanto mais forem os amores". Sociólogo, poeta e editor, publiquei em antologias e recebi alguns premios literários. Tenho dois livros: "Diario da Imperfeita Natureza" e "Derradeiro Prelúdio" (no prelo). Pretendo aqui interagir com voce sobre poesia ou qualquer outro assunto relevante.

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